Lendo hoje o artigo Ciborgues de Carne e Software, do Roger Tavares, tive algumas idéias:
1) Será que o processo de diluição do sujeito, ou de incorporação de novas subjetividades que apontam os estudos sobre o avatar, verdadeiramente existe? Será esse processo um mascaramento, ocultando pelo fascínio que as novas tecnologias nos trazem, de um poderio ainda maior de um super-sujeito que tem à mão o controle total de suas relações com os outros e consigo mesmo? (Entretanto, como mostra o artigo, novas personalidades são consagradas com as vivências nos jogos que escolhemos jogar, nos quais nos identificamos com personagens. Duas colocações: “escolhemos jogar” pode ser essa estrutura da “vontade e representação”, que caracteriza o sujeito; ou não escolhemos, há um enfraquecimento do sujeito e normalmente nos é jorrado um poderio externo – poder vigente, sociedade vigilante. Nesse segundo sentido, o designer tem a responsabilidade da manipulação).
2) Existe um processo há muito de modificação dos corpos: sociedades tradicionais “primitivas” já faziam isso utilizando-se de artifícios – corpo artificializado. O texto sugere um pós-humanismo na utilização de tecnologias para a modificação do corpo, o que segundo ele começaria na linguagem, sendo esta uma tecnologia. Não partilho dessa concepção acerca da linguagem. Existe uma linguagem técnica, mas ela é um caso particular. O mais importante é que sempre se artificializou o corpo, mas nunca se viveu omni-determinadamente pelo artifício – cálculo do corpo, cálculo da vida, cálculo do tempo-espaço e mundo. É o viver técnico que acusa Heidegger. O que, precisamente, marca esse pós-humanismo de que se diz hoje, então?
3) Esse corpo técnico é não puramente artificializado, mas pensado tecnicamente, vivido tecnicamente. O fascínio com a tecnologia também habita essa região: esquecimento do corpo, esquecimento do entorno; aparição de um novo corpo informatizado (talvez o modelo de ciborgue de Neuromancer), aparição de um novo entorno (a malha de “nós” que sugere o texto). Um corpo assim esquecido ainda vive, em uma solidão que não é estar-só (se bem que Bachelard diria n’A Poética do Espaço: “o ser é o bem-estar” p.27). Quiçá não mais “no mundo”, o corpo vê cegamente que “as paixões cozinham e recozinham na solidão. É encerrado em sua solidão que o ser de paixão prepara suas explosões ou seus feitos” p.29. É possível que uma angústia existencial venha preencher essa necessidade salutar de vazios.
4) Os poemas, ou mais geralmente a imagem poética de que nos fala Bachelard, possui essa motivação para uma comunhão de seres, essa reunião de existências que é a experiência da poesia, na ressonância de sua realidade própria que se apresenta: “As ressonâncias dispersam-se nos diferentes planos da nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos a um aprofundamento da nossa própria existência. Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é nosso. A repercussão opera uma inversão do ser. Parece que o ser do poeta é o nosso ser”. O poema nos toma por inteiro. A experiência poética é a criação imagética de um sentido, é o mostrar o mundo em sua aparição enigmática. “Por ser novidade, uma imagem poética põe em ação toda a atividade lingüística. A imagem poética transporta-nos à origem do ser falante” p.7. Justamente é esse o “mistério da linguagem” que Merleau-Ponty aponta com respeito em seu texto O algoritmo e o mistério da linguagem, resguardando sua impossibilidade de resolução pela técnica. Portanto, duas coisas: a língua é mundo, não apenas artifício; a língua é, assim como a percepção, comunhão de ser-no-mundo.
5) Isso posto, não se pode negar a permeação existencial entre dois seres já na linguagem, ou ainda anteriormente a isso (o cogito perceptivo de Merleau-Ponty), em um âmbito pré-pessoal. O avatar que se discute parece acompanhar esse poder, pois é também um recurso de linguagem, embora técnico. Mas, de acordo com esse modo de pensar, não é um fenômeno completamente novo. Sua originalidade, aí sim, possa vir da própria limitação de interações e na evocação da criatividade da linguagem meio a um mundo técnico – como nos divertidos exemplos do texto: Surfista_SP_:-) e \\gargula//, que verdadeiramente criam e dizem algo muito maior do que aquilo que os abriga fora projetado para permitir. Mas logo não foi preciso contornar o sistema: foram calculadas formas de interação diversas, que dizem respeito às aparências, preferências, vontades, costumes, localidades etc. do humano-avatar que surge nas redes sociais como Orkut ou MySpace. Assim, o que parece restar de novidade está, nos avatares de jogos, na referência ao movimento corporal/espacial que é controlado por nós e nos controla, ditando também suas vontades e habilidades. Assim, o designer não é apenas um faz-jogo, mas um faz-corpo, faz-consciência, o que nos leva à preocupação com a instituição da projetação de experiências. O que ocorre no entorno, que teve sua presença enfraquecida, quando se supõe o corpo inerte e a consciência dócil à imersão no jogo? Esse é o novo entorno público que atinge a subjetividade controlada – corpos dissociados, reunidos.
P.S.: Como, diferentemente dos meus colegas, eu não havia feito resenhas, essa não-resenha poderia servir como alguma atividade?